Processos demarcatórios se arrastam há décadas e colocam em risco sobrevivência de grupos de Mato Grosso que optaram por isolamento; imagens exclusivas obtidas pelo GLOBO confirmam existência e ocupação do território no chamado 'arco do desmatamento'
Por Daniel Biasetto e Luis Felipe Azevedo — Rio de Janeiro
Kawahiva com flechas é visto na floresta durante expedição; diversos vestígios comprovam a existência de povos isolados em Mato Grosso — Foto: Funai
Localizada no chamado arco do desmatamento e considerada a ‘porta de entrada’ da Amazônia Legal, a Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, no município de Colniza, em Mato Grosso, abriga um grupo isolado identificado e confirmado pela Funai nos idos de 2001. De lá pra cá, o processo de demarcação do território se arrasta, enquanto a floresta é derrubada por madeireiros e tomada pela grilagem em unidades de conservação que servem como zona de amortecimento ao habitat da comunidade ameaçada. Somente entre 2019 e 2022, já foram devastados mais de 5.500 campos de futebol de mata nativa.
O atraso de décadas na demarcação já atravessa três governos. O Ministério da Justiça chegou a publicar uma portaria no dia 19 de abril de 2016, na qual declarava os limites da área, porém, nada mais foi adiante e, passados exatos oito anos desde a publicação, o governo federal ainda patina na promessa de concluir a regularização fundiária.
O fato novo é que os órgãos federais descumprem desde agosto de 2023 uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) para elaborar um cronograma de identificação e delimitação das terras indígenas com referência confirmada de povo indígena isolado, entre elas Piripkura e Kawahiva, ambas em Colniza, cidade campeã de desmatamento na Amazônia em 2022.
Mapa mostra as Terras Indígenas Kawhiva do Rio Pardo e Piripkura, em Mato Grosso, que aguardam demarcação — Foto: Editoria de Arte
Ainda que pairem dúvidas sobre a existência desses povos isolados, por se refugiarem na mata profunda e quase não deixarem vestígios por onde passam, há indícios incontestáveis da presença dos kawahiva. É o que mostram imagens inéditas de expedições realizadas pela Funai obtidas pelo GLOBO.
Os objetos encontrados pelos sertanistas nos anos de 2020, 2021 e 2022, comprovam não só que os kawahiva circulam pela região, como também estão se reproduzindo. Nas fotos e vídeos é possível avistar tapiris (casas e proteção de palhoça), cestos e redes de envira (tipo de fibra de árvores) e cumbucas feitas da capemba da paxiúba (folha larga de palmeiras aéreas), de variados tamanhos, o que indica que algumas crianças estão entre o grupo e os usam como espécie de 'brinquedo'. Em 2011, uma família foi flagrada pelo sertanista Jair Candor enquanto se movimentava pela terra indígena, cuja extensão é de 411.844 hectares.
— Não há dúvida da presença dos indígenas nesses territórios. Algumas pessoas duvidam porque não entendem que são isolados, que vivem exclusivamente na floresta e por isso não são vistos nas cidades. Mas eu mesmo já topei com os kawahiva, em três ocasiões diferentes, tendo feito inclusive uma filmagem em 2011. Em outro momento, lá no início, eles já me jogaram uma flecha. Foram momentos marcantes — afirma Jair Candor, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, responsável pelo monitoramento e fiscalização da área.
Considerado um dos sertanistas mais experientes do Brasil em atividade, Candor explica em entrevista ao GLOBO como se deu sua experiência de confirmar a existência desses isolados durante sua trajetória no indigenismo.
— Eu confirmei a existência dos isolados Kawahiva do Rio Pardo em 1999, há 25 anos; os Piripkura eu localizei em 1989, ou seja, há 35 anos. Talvez o maior erro nessa demora toda (para demarcação das terras) seja não acreditarem que os indígenas têm direito a esses territórios, como se fosse mais fácil deixá-los desaparecerem antes — afirma, inconformado.
Jair Candor estima que existam na TI Kawahiva do Rio Pardo entre 30 a 40 indivíduos, pelo menos, com algumas famílias divididas em pequenos grupos, que seguem tendo filhos ao longo dos anos. Ele, hoje com 63 anos, também fala de seu sonho em ver o território demarcado antes de se aposentar.
— Um território demarcado e protegido é a necessidade que essas populações têm para sobreviver. Como são povos que decidiram viver em isolamento, precisam de boas condições ambientais para se alimentar e estar a salvo do contato com invasores. Sem a terra protegida eles não conseguem sobreviver. O meu maior sonho é ver essas terras demarcadas e protegidas, para que eu possa me aposentar em paz. Dediquei minha vida a esses povos, e espero poder presenciar o direito à terra conquistado — diz para completar logo em seguida:
— Confiamos que as demarcações virão, pois é direito dos indígenas isolados. Mas precisamos estar atentos, pois a cada ano que se passa aumenta a pressão sobre eles. Se queremos protegê-los, a terra deve estar garantida — finaliza.
Demarcações nos últimos nove governos — Foto: Editoria de Arte
Interesse econômico trava avanço
O resultado desse atraso na demarcação gera insegurança jurídica para a proteção desses povos que optaram pelo isolamento voluntário e não desejam manter contato com os “brancos”. Por terem resposta imunológica menos eficiente para combater infecções virais e por serem mais vulneráveis e suscetíveis a doenças, eles podem morrer por uma simples gripe, já que não têm memória imunológica e podem, sem exageros, serem dizimados ao primeiro contato com invasores.
Para o indigenista Elias Bigio, ex-coordenador Geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai e estudioso da região, não há dúvida de que a insatisfação e os interesses de fazendeiros e empresários do agronegócio estão por trás dessa demora para demarcar o território.
— Ao longo das últimas décadas o processo de demarcação teve de tudo: batalhas jurídicas em instâncias superiores, fogo na base da Funai e muita violência contra servidores que ali atuam. Em 2006 foi feita a identificação e logo depois, em 2007, começaram as contestações administrativas que a Funai respondeu a todas. Não satisfeitos, fazendeiros e empresários da região entraram na Justiça e questionaram a Funai. A Justiça determinou então a realização de dois laudos antropológicos, duas perícias antropológicas que confirmaram e referendaram o relatório de identificação da terra indígena no início de 2007 - relembra Elias.
Mas foi entre 2011 e 2012, quando o então presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso e o governador do estado estiveram como Ministro da Justiça da época, que a terra indígena começou a ser questionada sobre a presença dos isolados.
— Depois disso começou o movimento forte para provar a presença desses isolados. Então, a Justiça Federal de Mato Grosso determinou que fosse feita a demarcação e essa demarcação não foi feita. Finalmente, em 2016, a terra foi declarada. São mais de 10 anos depois da identificação e essa terra continua sendo questionada, uma vez que empresários conseguiram nova decisão para que fosse realizada uma nova perícia que está em andamento. Um absurdo! — acrescenta Elias:
— Não é possível que uma terra que é reconhecida, que é bem fundamentada, ocupada pelo um povo indígena isolado, esteja com essa demora de mais de duas décadas para ser regularizada. Então é uma violência contra os direitos dos povos indígenas e aos kawahiva que ali vivem.
Desmatamento, medo e violência
O Ministério Púbico Federal (MPF) recebeu denúncia das entidades indígenas em maio de 2023, onde se verificou um aumento expressivo de invasões e atividades ilegais em duas reservas extrativistas vizinhas a esses territórios, a Resex Guariba-Roosevelt (MT) e a Resex do Guariba (AM). Juntas, nos quatro anos de governo Jair Bolsonaro, o desmatamento nessas duas áreas somou 5.555 hectares de floresta devastada, o equivalente a quase seis mil campos de futebol. Mas nada foi feito.
O prejuízo só não foi maior em 2023 em razão do trabalho da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena (FPE-MJ), que segurou com apoio da Força Nacional a devastação dentro de Kawahiva e Piripkura, sem nenhum alerta de desmatamento. Agora, nesta semana, a portaria venceu e os agentes sequer podem sair da base, impossibilitados de participarem de atividades externas. Ou seja, na prática, os servidores da Funai estão sem proteção e de mãos atadas contra os invasores.
— As maiores dificuldades são a falta de segurança, assim como o desafio de fazer um trabalho de proteção territorial de áreas sem a conclusão do processo de demarcação, uma vez que essa longa espera termina por estimular novas invasões daqueles que apostam na aquisição dessas terras. A não regulamentação do poder de polícia da Funai atrapalha demais, ficamos amarrados, em insegurança jurídica também — afirma o indigenista Rodrigo Ayres, parceiro de Jair Candor no Maderirinha-Juruena e coordenador substituto da frente de proteção.
De acordo com Ayres, sem apoio das forças de segurança não dá para fazer o trabalho adequado.
— Não há condições de permanecer na região sem o apoio da Força Nacional. A Base Kawahiva já foi invadida a tiros, e eu já perdi as contas das vezes que recebemos ameaças de novas invasões, quando nós mesmos tínhamos que organizar a nossa defesa. É uma situação dramática, em uma região de gravíssimos conflitos fundiários. O risco é real e muito presente, infelizmente. Não sei até quando vamos conseguir segurar esse território sem a conclusão do processo de demarcação. É uma corrida contra o tempo, que vem gerando muita insegurança para nós e os indígenas. Além disso, é preciso dar condições mínimas para que as equipes sigam com o trabalho de monitoramento e proteção territorial. A demarcação, em verdade, deveria ser o básico — finaliza.
A Funai e o Ministério da Justiça são o “início da linha” do processo demarcatório, responsáveis pela identificação, estudo e declarações das terras, antes de seguir para o presidente homologar por meio de decreto. O Brasil tem hoje 477 terras indígenas regularizadas, 12 homologadas, 67 declaradas, 48 delimitadas e 132 em estudo. Um total de 736. Além disso, há cerca de 490 reivindicações de povos indígenas em análise no âmbito da Fundação.
Piripkura segue na fila por décadas, sem solução
Com uma extensão de 242,5 mil hectares, a Terra Indígena Piripkura é habitada por três indígenas em situação de isolamento, os últimos sobreviventes de pelo menos dois massacres liderados por madeireiros nos anos 1980. Alvo de invasores enquanto o processo de demarcação se arrasta por quase 40 anos, a TI é considerada a porta de entrada da Amazônia Legal.
Tema do documentário “Piripkura”, lançado em 2017 pelos diretores Mariana Oliva, Bruno Jorge e Renata Terra, a terra ganhou projeção depois de confirmada a presença de indígenas isolados. Tio e Sobrinho, Pakui e Tamandua seguem nômades pela floresta, entre os limites dos municípios de Colniza, Rondolândia e Aripuanã, distantes cerca de mil quilômetros da capital, Cuiabá.
Terra Indígena Piripkura foi tema de documentário, de Mariana Oliva — Foto: Reprodução
Embora a Funai tenha tomado conhecimento da existência de grupos isolados na região na década de 1980, foi apenas em 2008 que o Estado Brasileiro reconheceu a TI como de ocupação tradicional da comunidade, por meio de uma portaria.
Atualmente, a TI encontra-se em processo de regularização fundiária com um Grupo de Trabalho constituído e o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação em vias de elaboração. A competência para a proteção e monitoramento está a cargo da FPE-MJ. Por ora, segue amparada apenas por uma portaria de restrição de uso, o que fragiliza a proteção dos indígenas.
Em agosto de 2023, a Funai enviou um ofício à Procuradoria da República no município de Sinop (MT) para requerer a atuação do Ministério Público Federal (MPF) no processo de retirada de invasores.
No mês seguinte, a fundação apontou que a inexistência de reconhecimento da TI por parte do Estado Brasileiro leva um cenário de “intensa pressão fundiária”. Em documento, a Funai afirmou que aqueles que invadiram e ocuparam parcelas da terra após a portaria de 2008 devem ser considerados ocupantes de “má-fé”.
O órgão destacou também que a ciência sobre a territorialidade da TI deve ser levada em consideração pelo risco consciente imposto aos indígenas e que as atividades de desmatamento e queimada trazem efeitos ainda maiores ao se considerar a afetação secundária sobre matas preservadas e recursos naturais.
Segundo a Funai, a efetiva proteção territorial da TI só será alcançada com a devida identificação e delimitação do território. Além da necessidade de apoio da Força Nacional de Segurança Pública, em conjunto com as ações desempenhadas na TI Kawahiva do Rio Pardo. A fundação recomendou que o documento fosse encaminhado à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal para avaliação sobre a responsabilização dos infratores e a coordenação da retirada de ocupantes ilegais.
Ainda em setembro, a Funai enviou um ofício ao coordenador Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato e ao coordenador de Política de Proteção e Localização de Indígenas Isolados. O órgão relembra que uma decisão de 2021 converteu a Reintegração de Posse em Interdito Proibitório. A decisão manteve os invasores na TI durante a pandemia, tendo, contudo, proibido atividades que tivessem conflito com a proteção do povo indígena.
A fundação afirmou que a decisão estava sendo descumprida por parte de alguns réus por invasões, de forma que o desmatamento e atividades ilegais continuavam ocorrendo no interior da TI. No documento, a Funai destacou que o estado de pandemia já teve fim e não se justificava mais a permanência dos ocupantes ilegais, e pediu que as coordenações busquem uma reforma da decisão.
Floresta tropical dentro do território Piripkura, em Mato Grosso —
Foto: Victor Moriyama/The New York Times
Como mostrou O GLOBO, a terra tem histórico de invasão, desmatamento e extração ilegal de madeira. Em julho de 2021, a Justiça Federal determinou a retirada de invasores e desmatadores da TI, que, na época, ocupava a posição de mais devastada entre as com presença de índios isolados. De agosto de 2020 até maio do ano seguinte, foram destruídos o equivalente a mais de 2 mil campos de futebol.
Em 2022, o Ministério da Justiça autorizou o emprego da Força Nacional por três meses na terra para dar apoio às ações da Funai. No mesmo ano, a TI quase teve 12 mil hectares vendidos em um leilão, sem qualquer interferência da União ou do governo de Mato Grosso. A área faz parte de uma fazenda que foi usada por uma construtora para quitar dívidas na Justiça.
Outros lados
Questionada pelo GLOBO sobre o status atual da demarcação, a Funai apenas detalhou os mecanismos legais que se baseiam os processos, sem responder em que estágio está a regulação da TI Piripkura. A Funai também não citou a situação da TI Kawahiva, que aguarda ainda a demarcação física, de acordo com o cronograma ordenado pelo STF.
Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) afirmou que as homologações das demarcações das duas TI não estão na pasta, pois se encontram ainda em análise no Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
O MPI e o Ministério Público Federal (MPF) foram procurados pela reportagem, mas não responderam aos questionamentos até a publicação.